quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Na globalização, o Outro somos nós

Beja Santos

Ryszard Kapuscinski (1932 – 2007) é considerado uma das figuras monumentais do jornalismo moderno. Felizmente alguns dos seus relevantes trabalhos como Andanças com Heródoto, O Império ou Ébano, Febre Africana, estão publicados entre nós pela Campo das Letras, editora que recentemente reuniu seis pequenas conferências sobre o Outro, e onde Kapuscinski analisa e interpreta o que é ser europeu ou não-europeu, colono ou colonizado, branco ou negro. É uma fascinante, se bem que meteórica, viagem pela filosofia, pela história e pela antropologia. A mensagem é de uma enorme riqueza: para o outro nós também somos outros (O Outro, por Ryszard Kapuscinski, Campo das Letras, 2009).
O outro ou os outros, têm múltiplas interpretações, podendo servir para distinguir sexos, gerações, nacionalidades ou religiões, entre outras. Enquanto jornalista, Kapuscinski recorda-nos que a reportagem é o género literário de escrita mais colectivo: ouvem-se ou relatam-se histórias de diferentes testemunhos, trabalham-se depoimentos de quem viu, sofreu ou até possui provas sobre a matéria do relato. Essas pessoas encontradas são tão duais como nós, comportam o ser humano com alegrias e preocupações, mas também o ser humano portador de características raciais, de cultura, de crenças e de convicções. Para o repórter, a questão central que se põe é a relação que existe em cada um de nós, tal como aqueles que depõem nas reportagens. O aliciante é que cada encontro com o outro é sempre um mistério, independentemente da preparação do jornalista. Kapuscinski recorda-nos que toda a literatura universal é dedicada aos outros, desde os grandes pilares da crença religiosa passando pelos clássicos como Homero ou Hesíodo. Nem sempre houve curiosidade em conhecer povos, usos e costumes, fora do nosso território, houve civilizações inteiras desinteressadas no mundo exterior e o autor refere mesmo que África nunca construiu nenhum barco para ver o que há além dos mares que a rodeiam.
A Europa foi o único continente que se revelou o interesse pelo mundo, não só de o conquistar e dominar como também de o conhecer. É uma longa história que nos pode ajudar a compreender a curiosidade de viajantes como Heródoto que acabaram por fazer historiografia. Perceber porque é que o nosso pensamento é eurocêntrico ajuda-nos a entender porque é que o choque das civilizações é um dos fenómenos mais antigos da humanidade. No fim da Idade Média europeia começou a expedição da Europa à conquista do mundo, à subjugação do outro. O outro, para esse europeu, era selvagem e talvez desprovido de alma, o europeu cobiçava ouro e escravos, levava religiosos para darem fé e a salvação, isto não significando que tais relações interculturais e inter-raciais se processassem em planos de igualdade, revelação só surgiu depois do Iluminismo, momento em que o outro passa a ser um problema interno na cultura europeia, problema ético de cada um de nós.
É com o Século das Luzes que se começa a apregoar a ideia da ciência universal e difunde-se o conceito do “cidadão do mundo”. Mais tarde, com o aparecimento da antropologia surgiram duas correntes para interpretar o outro: os evolucionistas que acreditavam no progresso inevitável, era tudo uma questão de tempo dos primitivos chegarem a civilizados; e os difusores que consideravam que no nosso planta existiam várias culturas e civilizações interpenetrando-se e fundindo-se. Quando a antropologia se consolidou, deu-se como certo e seguro que o outro, de raça e tradições diferentes, tem uma cultura social e espiritual bem desenvolvida, não deve ser subjugado mas compreendido.
E chegamos ao fim do séc. XX aceitando que participamos num mundo multicultural, enriquecidos pela experiência do renascimento e por toda uma rica aprendizagem de combate ao racismo, à intolerância e ao colonialismo. Só que, convém não iludir, houve 500 anos de existência de uma relação desigual que só começa a mudar de natureza com o processo de descolonização. Se no passado os outros eram os não-europeus, agora arrostamos com a complexidade de uma escala ilimitada de nos entendermos com todas as raças e culturas. Caminhamos para a globalização, e aqui os outros são sujeitos a olhar o outro e a procurar entendê-lo à luz das grandes mudanças desencadeadas pela electrónica e pela consciência crescente das desigualdades. A globalização salda-se num número impressionante de contactos e encontros, com um sem número de obstáculos no caminho de que o narcisismo cultural é um dos mais importantes. A grande novidade é ver hoje o acatamento pela diversidade ao lado da percepção do direito à existência e a uma identidade própria. Como nos recorda Kapuscinski, tudo isto coincidiu com a grande revolução das tecnologias de comunicação que possibilitou o encontro multilateral das culturas.
Possuímos um retrato de aquilo que pensamos sobre os outros: partimos da cor da pele, da língua com que nos entendemos, a religiosidade, tudo isto somado faz com que prevaleça de mim para o outro uma poderosa carga emocional sobre o tom de pele, a nacionalidade e a religião. Os EUA têm um tratamento diferente dos europeus porque circulam pelo mundo com o passaporte, aceitam ser percebidos pelos outros pela sua nacionalidade e não pela sua cor ou religião.
Escreve Kapuscinski: “O mundo, para mim, foi sempre uma grande Torre de Babel. Mas uma torre onde Deus misturou, não só línguas, mas também culturas, paixões e interesses, e onde criou, como habitante, um ser ambivalente que une em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o estranho. E assim chegámos à aldeia global, onde assistimos ao paradoxo da globalização dos media ao mesmo tempo que aumenta a superficialidade, a falta de coesão e o caos… É um mundo que, potencialmente, dá muito, nas também exige muito, e onde as tentativas de escolher um percurso com atalhos não levam a parte nenhuma”.
Estamos pois a descobrir um novo Outro entre o global e as nossas particularidades, esse talvez seja o maior desafio para o diálogo concordante com o Outro. Ao citar Joseph Conrad, Kapuscinski questiona como vai ser esse encontro. Ele dependerá da nossa capacidade e o prazer e encantamento, para o significado do mistério que rodeia as nossas vidas, mas também para a solidariedade, na alegria, nos desgostos, nas esperanças e nos medos que ligam os homens entre si. É dessa capacidade de ligar que dependerá o entendimento e a solidariedade de nós com o outro, do outro conosco.

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